Boletim Oficial de Roberto Motta

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121 - Juristas, Soldados e Pilantras

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A história do Brasil mostra que não há lei, precedente, doutrina ou jurisprudência que não possa ser virada do avesso para favorecer quem está no poder.

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Roberto Motta
mai 31, 2025
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Em 1932 os paulistas pegaram em armas para enfrentar o governo do ditador Getúlio Vargas. Episódios como esse são recorrentes na história do Brasil.

Primeiro preciso dizer que amo o Brasil. Aqui está minha pátria, minha terra e meu lar, incluindo tudo de ruim e de bom. Já vivi em um país do primeiro mundo, em uma cidade maravilhosa e com um ótimo emprego e mesmo assim resolvi voltar. Várias coisas me trouxeram de volta: minha família, a falta dos meus amigos, o clima, a comida e a vida social. É maravilhoso viver em um país onde todos falam português e compartilham comigo um mesmo passado.

Vários amigos saíram do Brasil na mesma época que eu. Quando voltei, eles ficaram no exterior. Em termos econômicos estão todos à minha frente. Não sei se estão mais, ou menos, felizes do que eu, porque não é fácil medir felicidade. O que posso dizer é que jamais me arrependi de ter voltado. Posso dizer também que morar fora do Brasil é uma experiência transformadora. Quem morou em um país do primeiro mundo tem pouca probabilidade de adotar as posturas extremas e falaciosas mais comuns quando se trata de Brasil: a primeira é dizer que esse país é um inferno do qual é preciso escapar o mais rápido possível; a segunda é acreditar que desfrutamos de um lugar privilegiado entre as nações, um país abençoado com uma natureza farta e que isso nos garante um futuro próspero.

Nenhuma dessas visões corresponde à minha. Meu ceticismo está em constante duelo com meu otimismo. Não consigo viver em outro lugar a não ser no Rio de Janeiro, mas isso não me impede de ter chegado a um diagnóstico pouco otimista quanto à capacidade da nação brasileira de, um dia, se livrar do ciclo vicioso de populismo, corrupção e uso pervertido e violento do poder que nos caracteriza. Estou menos interessado em análises pseudocientíficas e explicações ideológicas do que nos fatos: no Brasil as instituições são facilmente transformadas em caricaturas de si próprias; não há lei, precedente, doutrina ou jurisprudência que não possa ser virada do avesso ou transformada no oposto do que era até pouco tempo; por aqui há abundância de canalhas e escassez de heróis – os poucos que surgem são, em geral, destruídos, e até sua memória é apagada ou distorcida para que eles sejam mais conhecidos por suas imperfeições do que por seus atos heroicos.

Há teorias com variados graus de consistência que tentam explicar a origem desses erros. Uma delas contrasta o nascimento da nação brasileira com a norte-americana. O país chamado Estados Unidos da América foi criado por decisão voluntária de 13 estados soberanos, ex-colônias que haviam se tornado independentes do Reino Unido através de uma guerra e que só depois de muita hesitação concordaram em se juntar para formar um novo país. Isso não estava nos planos originais. A relutância só foi vencida com uma Constituição que criou um sistema verdadeiramente federal, restringindo o poder do governo central. A mesma Constituição aprovada em 1789 vigora até hoje. Em assuntos como legislação penal, regulamentação de armamento civil e sistema eleitoral, por exemplo, cada estado americano funciona quase como um país independente. O sistema de eleição presidencial através de um colégio eleitoral significa que, na verdade, o candidato a presidente da República precisa disputar 50 eleições estaduais.

A origem do país chamado Brasil foi completamente diferente. Começamos como uma única colônia. Com a vinda da família real para o Rio de Janeiro, em 1808, nos tornamos parte do reino de Brasil, Portugal e Algarves. Nossa independência veio da reação do príncipe herdeiro – D. Pedro I - contra os revolucionários das cortes de Lisboa que tinham praticamente sequestrado o seu pai, o rei Dom João VI. D. Pedro era um monarca excepcionalmente preparado e um líder militar corajoso. Ao enfrentar turbulência política, e preocupado com o destino de Portugal, D. Pedro abdicaria em favor do seu filho, D. Pedro II – então com 5 anos de idade – e voltaria a Portugal para guerrear contra seu irmão, D. Miguel, que havia usurpado o trono destinado à Dona Maria, filha de D. Pedro.

Enquanto Pedro II não chegava à maioridade o Brasil foi governado por regentes. Foi um período turbulento. Para estabilizar o país D. Pedro II foi declarado maior de idade – e começou a reinar – aos 14 anos. Seu governo fez do Brasil uma ilha de tranquilidade comparado ao resto da América Latina, banhada no sangue de movimentos de libertação e guerras. Pedro II seria o segundo e último monarca do Império do Brasil.

Tentativas de promover a independência já tinham acontecido antes do grito dado por D. Pedro às margens do Ipiranga em 7 de setembro de 1822. Um dos episódios mais celebrados da história oficial brasileira foi uma tentativa de tomada violenta do poder – não seria errado chamá-la de um golpe de estado - organizado por um grupo que, pelo que se sabe, não tinha qualquer possibilidade de sucesso. Os revoltosos eram membros da elite local – poetas, advogados, militares e religiosos – que não tinham absolutamente nenhum dos recursos necessários a um golpe como armas, tropas, apoio popular ou sequer um mínimo de organização[1][2]. Essa tentativa de tomada do poder ficou conhecida como Inconfidência Mineira. Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, um militar que falava demais, foi escolhido como bode expiatório no inquérito que se seguiu e foi o único que pagou com a vida. Muito tempo depois ele seria escolhido como o mártir símbolo da República, e representado pela iconografia oficial com uma figura semelhante à de Jesus Cristo. O toque irônico é que alguns dos envolvidos na conspiração mineira tentaram, e quase conseguiram, estabelecer comunicação com um dos pais fundadores dos Estados Unidos - Thomas Jefferson - que na época era embaixador americano na França[3].

A Inconfidência Mineira foi uma tentativa de tomada do poder organizada por um grupo sem qualquer possibilidade de sucesso.

Muitos se chocam ao constatar que a chamada “Proclamação da República” de 1889 foi, na verdade, um golpe de Estado bem-sucedido, conduzido à revelia da vontade popular. A república não foi “proclamada”; ela foi imposta. O golpe que a impôs foi executado por militares descontentes com a redução das tropas e desejosos de maior participação na vida política. O sonho dos golpistas era a implantação de uma ditadura republicana positivista. O imperador D. Pedro II poderia ter resistido, convocado tropas de outras regiões do país e, talvez, mantido o poder. Mas preferiu evitar derramamento de sangue. O sangue seria derramado de qualquer jeito ao longo de toda a história daquela república nascente. O monarca, um dos maiores intelectuais brasileiros, estadista sóbrio, justo e liberal reconhecido em todo o mundo, teve 24 horas para deixar o país com sua família. Ele morreria no exílio.

A primeira eleição presidencial foi indireta. O primeiro presidente da república, Marechal Deodoro da Fonseca, era um militar autoritário. Seu vice-presidente, Marechal Floriano Peixoto, também. Confrontado com a aprovação de uma lei de responsabilidade que poderia significar seu impeachment, Deodoro a vetou. Quando o Congresso derrubou seu veto ele fechou o Congresso, cercando-o com tropas. O ato provocou uma rebelião na Marinha, conhecida como Revolta da Armada. Navios de guerra rebeldes fundeados na Baia de Guanabara ameaçaram bombardear a cidade do Rio de Janeiro. Para evitar uma guerra civil, Deodoro renuncia. A Constituição dizia que novas eleições deveriam ser convocadas. Não foram: o vice-presidente Floriano Peixoto assume[4].

Confrontado com a aprovação de uma lei de responsabilidade que poderia significar seu impeachment, Deodoro fechou o Congresso, cercando-o com tropas.

Floriano depôs governadores adversários embora a lei não lhe permitisse fazer isso. Em vários estados houve luta armada. Em 1892 estoura uma revolta nas fortalezas da baía de Guanabara, ferozmente reprimida. O líder foi fuzilado, embora a Constituição proibisse a pena de morte. Treze generais divulgam manifesto pedindo respeito à Constituição e eleições, apoiados por políticos e jornalistas. Floriano pune os generais e deporta políticos e jornalistas para locais remotos, uma forma de punição proibida pela Constituição.

Em 1891 Júlio de Castilhos, político positivista, fora eleito governador do estado do Rio Grande do Sul. Com apoio de uma constituição estadual que ele mesmo escrevera, Castilhos cria uma virtual ditadura no governo estadual. Em 1893 inicia-se uma guerra civil no Rio Grande do Sul - a Revolução Federalista - que dura até 1895. Foi um dos conflitos mais sangrentos da história com fuzilamentos sumários, degolas de prisioneiros, mutilação de pessoas e até de cadáveres. Em seguida estoura outra rebelião na Marinha, a segunda Revolta da Armada. O país está dividido em facções irreconciliáveis. Em 1894 forças rebeldes da Marinha desembarcam em Santa Catarina e se unem aos federalistas, proclamando um governo provisório em Desterro, atual Florianópolis, que cai depois de três meses.

Em 1893, durante a Segunda Revolta da Armada, a Marinha bombardeou a cidade do Rio de Janeiro.

Prudente de Morais é eleito como o primeiro presidente civil. Seu governo enfrenta a rebelião de Canudos, que impõe inúmeras derrotas ao exército. Cria-se a narrativa de que Canudos seria sustentada por uma conspiração monarquista. O Rio de Janeiro é tomado pelo caos e jornais são destruídos. Um atentado contra o presidente resulta na morte do Ministro da Guerra, Marechal Bitencourt. Prudente de Morais experimenta a maior impopularidade de qualquer homem público até então. O Congresso decreta estado de sítio e Prudente de Morais reprime adversários sem preocupação com a ordem legal. Inquéritos policiais indiciam congressistas como Pinheiro Machado, preso a bordo de um navio de guerra, Barbosa Lima, antigo governador de Pernambuco, e Alcindo Guanabara, jornalista, todos deportados com outros presos para Fernando de Noronha. A imunidade parlamentar não tem mais valor.

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